Quer criar jogos? Alunos da USP desenvolvem games e ensinam como fazer
Fellowship of the Game, grupo de extensão da USP em São Carlos, produz dezenas de jogos todo ano e oferece cursos para quem quer aprender
Quem não viveu, ainda vai viver: é comum, na vida do aluno universitário, desejar que o ônibus pudesse correr como um carro de Fórmula 1 — e até sair voando — para chegar mais rápido ao campus, pelo desespero de estar atrasado para uma aula importante. É desse sentimento tão cotidiano que nasceu o jogo Subi no Ônibus, criado por alunos do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP em São Carlos.
Nele, você deve guiar um ônibus da USP pela estrada de maneira insana e desviar do máximo de obstáculos que conseguir, desafiando o espaço-tempo. E não adianta evitar carros, caminhões, e até as vacas que caminham na pista: nesta versão bem caótica da realidade, você deve correr em alta velocidade, coletando pontos pelo caminho, e assim subir no ranking de jogadores. Com os pontos, é possível melhorar seu desempenho “comprando” vida adicional, aceleração, escudo contra batidas e até um raio laser para destruir obstáculos.
Subi no Ônibus está disponível gratuitamente no Google Play para usuários de smartphones Android e também em uma versão que pode ser jogada pelo computador, direto no navegador (sem necessidade de fazer download). O jogo, que não tem fins lucrativos, foi criado para a Semana de Computação (Semcomp) pelo grupo Fellowship of the Game (FoG) em parceira com a equipe da Semcomp e o Ganesh (grupo extracurricular baseado no ICMC sobre segurança da informação) e conta com trilha sonora e arte originais.
Sociedade dos Jogos – O Fellowship of the Game (ou, em português, algo como “sociedade dos jogos”) é um grupo de extensão da USP em São Carlos formado por estudantes e colaboradores vinculados ao ICMC, em sua maioria. Os trabalhos não têm fins lucrativos e o foco do grupo é a criação de jogos eletrônicos divertidos, de código aberto e multiplataforma. O objetivo é aplicar os conhecimentos adquiridos na graduação e integrá-los com tecnologias disponíveis no mercado.
Criado em 2004, o grupo conta hoje com 74 membros. Apesar de os cursos relacionados à computação serem os mais comuns, qualquer curso é válido para participar do FoG. Aliás, até quem não está matriculado em um curso superior também pode fazer parte do grupo, basta ter mais de 18 anos. A seleção acontece anualmente, e não é necessário ter conhecimentos prévios: o principal requisito é o interesse pelos jogos e vontade de aprender.
Abner Eduardo Silveira Santos, de 22 anos, cursa Ciências de Computação e é presidente do Fellowship of the Game. Ele conta que todo semestre são produzidos novos jogos, geralmente de 7 a 9 games. “É claro que a maioria não tem o mesmo nível de quantidade de conteúdo dos jogos comerciais, nosso escopo não é tão grande. Mas, mesmo assim, eu me impressiono com a quantidade e qualidade dos jogos que produzimos, que vêm melhorando todo semestre.”
O processo de desenvolvimento no FoG começa com um grande brainstorm, que vai gerar os grupos de trabalho de cada jogo, já que os membros se alinham de acordo com o projeto que mais gostam. A partir daí, cada grupo cria um cronograma, que será acompanhado pela coordenação durante todo o processo até o jogo ficar pronto e ser publicado ao fim do semestre.
Em 17 anos de existência do FoG, os estudantes já criaram muitos jogos, 50 deles estão disponíveis aqui. A maioria das produções é feita para ser jogada no computador, grande parte no navegador, mas algumas também são desenvolvidas para celular.
As temáticas variam bastante: games digitais relacionados à vida universitária – como o próprio Subi no Ônibus; o BixoVentures, desenvolvido para mostrar o campus e dar dicas aos calouros com uma ambientação de suspense e aventura; e o Sick Love, em que o jogador poderá viver a vida de um universitário em busca de um grande romance, fugindo de relacionamentos abusivos.
Além de temas diversos, como robôs versus aliens, salvar um mundo autoritário controlado por anjos, prevenção ao abuso sexual infantil, um RPG em pixel art de sobrevivência ao inferno, uma aventura na Floresta Amazônica e lontras duelistas do Velho Oeste estadunidense.
A voz dos desenvolvedores – Tiago Marino Silva tem 21 anos e cursa Ciências de Computação. Ele é membro da frente de desenvolvimento do FoG e participou da coordenação do jogo Subi no Ônibus. O aluno de graduação conta que vê os jogos como “importantes ferramentas para o ser humano”, e defende os estudos em programação tanto de serious games, ou “jogos sérios” – conceito que define as aplicações que têm como primeiro objetivo algo além da diversão, como os educacionais, jogos para fins terapêuticos e os que tratam de temas sensíveis, como luto e depressão – quanto daquele tipo de jogo mais conhecido, que é voltado principalmente para o entretenimento.
“O uso de jogos facilita o contato da pessoa com tratamentos ou ferramentas educacionais. Por exemplo, o jogo pode deixar mais fácil digerir as várias horas de terapia que alguém que está em recuperação precisa passar. E não só os jogos sérios são importantes, todos os games são uma maneira de conectar pessoas, de se divertir e de gerar experiências únicas para cada jogador”, diz o estudante.
Para Tiago, o jogo digital é “mais uma forma de mídia interativa” que cria novas possibilidades para os desenvolvedores comunicarem suas visões de mundo aos jogadores. “Eu gosto de fazer jogos porque isso me permite trabalhar minha criatividade, dar vida aos mundos e personagens que eu imagino e a criar uma experiência única para as pessoas.”
E não são só os alunos que se dedicam ao estudo e desenvolvimento de jogos. Claudio Fabiano Motta Toledo é professor do ICMC e ministra a disciplina Introdução ao Desenvolvimento de Jogos Eletrônicos, em que membros do FoG dão palestras e ao fim do curso os inscritos devem produzir um jogo.
O professor, que é tutor do FoG, considera as atividades do grupo de extensão “extremamente benéficas para a comunidade” e defende os games. “Os jogos realmente não deveriam ser vistos com preconceito. A indústria está crescendo muito no Brasil e no mundo, e hoje a área de desenvolvimento de jogos está deixando de ser só uma área de aplicação para se tornar também uma área de estudo reconhecida pela academia. Hoje nós temos congressos, conferências internacionais, pesquisas e revistas científicas tratando da área de jogos”, afirma.
Claudio destaca a importância dos serious games. “São muitas possibilidades. Eles podem ser ferramentas médicas de apoio para reabilitação de movimentos e desenvolvimento cognitivo. Também podem ajudar na educação alimentar, como é o caso de um aplicativo que o FoG está desenvolvendo com o curso de Nutrição da USP, e se der tudo certo será usado na rede pública de ensino. Tem outro jogo, voltado para educação ambiental, que eles estão desenvolvendo com um grupo de pesquisas da Unesp, e por aí vai.”
Mas o tutor do Fellowship ressalta que não são só os jogos sérios que têm valor: “Os jogos podem trazer uma série de benefícios para a sociedade, e o entretenimento também deve ser visto como um desses benefícios”.
Para criar jogos – Se engana quem pensa que só das ciências da computação e programação vivem os jogos. As produções são multidisciplinares e envolvem áreas muito diferentes, como a psicologia, a música, as artes visuais e design, dentre outras. Tiago considera isso um ponto positivo e que agrega pessoas diversas. “A beleza do desenvolvimento de jogos é que é um trabalho que envolve muitas áreas e, consequentemente, incentiva o trabalho em grupo.”
Quem quer produzir jogos e se assustou com a quantidade de conhecimentos envolvidos pode ficar tranquilo: não é preciso saber todas essas áreas para começar a desenvolver os games. “O primeiro passo é simplesmente colocar a mão na massa. Existem muitas ferramentas que facilitam o desenvolvimento. Se você não consegue fazer arte visual, você pode pegar personagens, cenários e artes de interface na internet. Se você não sabe programar, tem ferramentas de programação visual e ferramentas que já implementam a parte lógica mais complexa dos jogos, te delegando principalmente a parte criativa”, explica o desenvolvedor do Subi no Ônibus.
Além de produzir os jogos virtuais gratuitos e abertos, o FoG também oferece minicursos em seu canal no Youtube para quem quer aprender a programá-los e materiais informativos nas redes sociais. O professor Claudio destaca o tamanho do projeto educacional do FoG. “Para você ter uma ideia, desde 2017, foram mais de 56 cursos de extensão oferecidos pelo FoG sob a minha responsabilidade, mas ainda teve outros cursos sob responsabilidade de outros tutores.”
Abner, presidente do FoG, diz que o grupo acredita que a melhor ferramenta para fomentar o desenvolvimento de jogos é o compartilhamento desse conhecimento. Os cursos, divulgados nas redes sociais do FoG, são sempre gratuitos e podem ter nível básico, intermediário e até avançado. Ele destaca também as atividades externas do Fellowship. “Nós queremos encantar o maior número de pessoas que conseguirmos a se interessarem pela área, por isso acreditamos na importância dos eventos públicos que organizamos todo ano, das palestras, dos cursos e de disponibilizar um código aberto dos nossos jogos para estudo.”
Texto: Amanda Mazzei – Jornal da USP
Imagens: FoG